quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Banho de sangue

 

Multiplique por três o número de mortos no presídio de Manaus. É muito, é escandaloso? Pois 164 mortos é a média diária de homicídios no Brasil. E isso não nos escandaliza. Reagimos quando acontecem no mesmo lugar. Ou quando ocorre a invasão de uma casa em Campinas no réveillon por um tresloucado a matar todos, inclusive o próprio filho de oito anos. O banho de sangue não é apenas o do presídio manauara; é o dia-a-dia do nosso país tropical, habitado pelo brasileiro cordial de que falou Sérgio Buarque de Hollanda.

Foi uma guerra entre facções. O PCC, importado de São Paulo para a Amazônia e a FDN – a Família do Norte – que mostrou quem manda, matando 56 integrantes do grupo inimigoA polícia decidiu não intervir, por decisão sábia do Secretário de Segurança, um delegado federal. Se interviesse, seria responsabilizada pelas mortes, tal como no Carandiru, em 1992, em que os PMs foram condenados a mais de 600 anos de prisão. A síndrome do Carandiru poupou a polícia de mais um ônus, embora já a estejam criticando por não intervir. Paga por ir e paga por não ir.

Aliás, é incrível essa nossa preferência por bandidos e nossa antipatia em relação à políciaParadoxalmente, reclamamos da falta de segurança. Parece uma posição psicótica. Aos noticiarmos a ação de bandidos, não poupamos para eles adjetivos elogiosos“Numa ação audaz, assaltaram o carro forte”; ou: “Quadrilha especializada em explosão de caixas eletrônicos”. No país de amedrontados e amadores, audaz e especializado são elogios raros, em geral reservados para bandidos, nas nossas páginas e microfones. Em vez de quadrilha de ladrões de automóveis, a notícia sai assim“Quadrilha especializada em roubo de automóveis.” Os bandidos agradecem e devem pôr os recortes na parede.
 
O povo está acuado e amedrontadoAs autoridades recomendam que não reajam. A lei desarmou as pessoas de bem, impedindo o elementar direito de defesa e dando tranquilidade ao bandido, enquanto a polícia carece de meios e de apoio dos governos e dos meios de informação. As leis, feitas por nossos representantes, mais parecem ter sido feitas por representantes de foras-da-lei. Depois do presídio de Manaus, ainda há quem sugira soltar condenados, por causa da superlotaçãoPois os que estavam no semi-aberto levaram as armas que mataram. Só tem um lugar em que o bandido pára de assaltar e matar: atrás das grades. Para isso, é preciso perguntar de que lado estamos. Pois o banho de sangue pode aumentar.

Atrás das grades

 

O massacre de Manaus é sintoma. A doença é ampla, complexa e tem consequências para além da segurança pública
Míriam Leitão, O Globo
Há várias anomalias da questão penitenciária brasileira. Uma delas é o governo não saber quem exatamente está atrás das grades, nem quantos são os prisioneiros.
A ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), desembarca hoje em Manaus para se reunir com presidentes dos tribunais.
Parte do problema é do Judiciário, mas, evidentemente, o assunto segurança pública é do Executivo.
O STF declarou, tempos atrás, que o país está em “estado de inconstitucionalidade” em relação aos presídios. Não um ou outro fato, mas um desrespeito sistemático à Constituição. Por isso, a presidente do STF falou sobre a urgência desse problema no discurso de posse em setembro e começou a trabalhar nele no dia seguinte, conversando com os tribunais para aumentar a celeridade dos julgamentos e tentar avançar em tudo o que cabe ao Judiciário.
Em novembro, começaram as conversas do Supremo com o IBGE para um censo carcerário. A dificuldade é como os pesquisadores do IBGE vão entrar nos presídios para preencher os formulários. Por isso está sendo feito um convênio com a Pastoral Carcerária para tornar viável o levantamento de dados.
Hoje, quando se fala que 40% ou 60% dos presos são temporários, é um mero chute. O país não sabe.
O aumento da complexidade do crime na região Norte vem ocorrendo há algum tempo.
Em 2008, ouvi do então comandante militar da Amazônia, general Augusto Heleno, que o tráfico de drogas havia deixado de ser aéreo para ser pelos rios, explorando os 22 mil quilômetros de vias fluviais, e por isso era prioritária a união de todos os órgãos governamentais no controle ao crime que aumentaria na região.
O então diretor da Polícia Federal Luiz Fernando Corrêa disse que o planejamento estratégico até 2022 definira a Amazônia como prioritária.
Ouvi, na época, de ONGs e órgãos ambientais, que o tráfico pelos rios estava recrutando jovens ribeirinhos. Eles participavam do desmatamento e eram pagos com pastas de coca.
O país estava vivendo, então, os primeiros anos do crescimento vertiginoso da criminalidade na região. Em 10 anos, de 2004 a 2014, o número de homicídios cresceu 120% no Norte, 123% no Nordeste, 233% no estado do Amazonas, e caiu 35% no Sudeste.
Além disso, as facções que eram urbanas, e disputavam a hegemonia de centros consumidores do Rio e de São Paulo, espalharam-se pelo país.
O fundo penitenciário tem dinheiro não usado na construção de presídios. O dinheiro vive contingenciado e, quando se tenta construir, as cidades escolhidas reagem. Ninguém quer um presídio por perto.
Especialistas em violência e segurança pública, como os sociólogos Cláudio Beato e Gláucio Soares, não acham que o problema é insolúvel e defendem que cada nível governamental tem algo a fazer para melhorar a situação.
Beato acabou de assumir a Secretaria de Segurança Pública de Belo Horizonte e está convencido de que há muito trabalho para o município.
— O crime organizado assusta e faz espetáculos como o país está vendo em Manaus, mas o crime desorganizado, os furtos e roubos nas cidades, infernizam a vida da população. Isso se combate com informação e policiamento ostensivo que agora pode ser feito pela guarda municipal. Acabamos de montar um Centro de Big Data aqui porque esse é o começo: saber onde os crimes ocorrem — diz Cláudio Beato, que também é professor da UFMG.
O sociólogo Gláucio Soares tem estudado alguns bons exemplos no Brasil e no exterior. Ele acha que a crise carcerária não é um problema isolado:
— Não dá para analisar como se fosse um problema hermético. A associação entre a política e o crime, e a existência de um toma lá, dá cá entre eles é antiga. Há até casos de membro de gangue que vira candidato. Por outro lado, há casos de sucesso no Brasil e no exterior na administração de presídios e na recuperação de presos.

Tiririca completa seis anos de Câmara, sem falta e sem discurso

Primeiro palhaço profissional a se eleger deputado, Tiririca participou de todos os 612 dias em que houve sessão destinada a votação na Casa durante o seu mandato e meio. Mas só falou ao microfone na votação do impeachment. Confira a produção legislativa dele


Nilson Bastian/Ag. Câmara
Tiririca na única vez em que usou o microfone no plenário da Câmara em seis anos de mandato
 
Na noite do último 17 de abril, o primeiro palhaço eleito deputado federal no país estreou no microfone. “Senhor presidente, pelo meu país, meu voto é sim”, disse, em tom seguro e sem gracejos, o deputado Tiririca (PR-SP) ao ser chamado por Eduardo Cunha (PMDB-RJ) para declarar seu voto – o 197º a favor da abertura do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT). O parlamentar foi saudado com festa pelos colegas. Aqueles cinco segundos são os únicos, até o momento, em que a voz de Tiririca foi captada pelo sistema de som da Câmara em seus seis anos de mandato. Eleito pela primeira vez em 2010 com a segunda maior votação da história à época (mais de 1,3 milhão de votos), o deputado paulista é responsável por dois feitos: jamais falta às sessões mas também nunca discursa.
As duas marcas são raras no Parlamento brasileiro. Grande parte dos parlamentares disputa o horário nobre do plenário para fazer pronunciamentos. É o momento de garantir espaço nos órgãos oficiais da Casa, como a TV Câmara, e no programa “A voz do Brasil”, canais que dão visibilidade às ações políticas de deputados e senadores em suas bases eleitorais.
A assiduidade em 100% das sessões reservadas a votação, aquelas em que a presença é obrigatória, é coisa para pouquíssimos. Além de Tiririca, apenas os deputados Lincoln Portela (PR-MG) e Manato (SD-ES) não tiveram falta nos últimos seis anos, período em que foram realizadas 612 reuniões em plenário convocadas para analisar projetos, medidas provisórias ou propostas de emenda à Constituição. Os dados são de levantamento do Congresso em Foco.
Nas principais votações de 2016, Tiririca votou “sim”. Ele se manifestou a favor do impeachment de Dilma, da cassação de Eduardo Cunha, do teto para os gastos públicos, da reforma do ensino médio e do pacote de combate à corrupção, com a emenda que prevê o enquadramento de magistrados, promotores e procuradores entre as figuras públicas passíveis de responder por abuso de autoridade.
O voto de Tiririca no impeachment:
Produção legislativa
Na Câmara desde fevereiro de 2011, Tiririca apresentou 14 projetos de lei, dois deles assinados em conjunto com colegas. Entre as propostas sugeridas por ele, seis pretendem assegurar direitos à comunidade circense, na qual ele começou sua carreira artística ainda criança. O deputado é titular da Comissão de Cultura, onde é um dos mais assíduos também. Faltou a apenas 3 das 24 reuniões realizadas pelo colegiado em 2016.
Uma das proposições de Tiririca determina o reconhecimento do circo como manifestação cultural para que a categoria possa ser beneficiada com os incentivos fiscais da Lei Rouanet (PL 5095/2013). Ele também propõe a inclusão do trailer e do motor home utilizados por artistas de circo como moradia no programa “Minha Casa, Minha Vida” (PL 5094/2013).
Em outros dois projetos, Tiririca sugere a isenção do Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) para veículos usados em atividade circense (PL 3544/2012) e mudança na legislação para garantir aos filhos de artistas de circo, na faixa etária de 4 a 17 anos, cuja atividade seja itinerante, vaga nas escolas pública ou particulares (PL 1528/2011). Entre as propostas não voltadas ao circo, Tiririca defende mudança na legislação para impedir a substituição de candidatos inelegíveis com base na Lei da Ficha Limpa. A prática tem sido recorrente nas eleições e, muitas vezes, o candidato barrado é substituído por parentes e, assim, a família acaba conquistando a vaga.
Em seis anos, o deputado relatou 15 projetos. Alguns deles batizam vias e viadutos. Um chegou a virar lei (13.244/2016), o que confere ao município de Caçapava (SP) o título de Capital Nacional do Antigomobilismo, de autoria da ex-deputada Aline Corrêa (PP-SP). Outra proposta relatada por ele institui o Dia Nacional do Condutor de Ambulância.
Verba indenizatória
Embora esteja entre os mais assíduos, Tiririca não está entre os mais gastadores. O deputado utilizou R$ 304,7 mil da verba a que tem direito para ressarcir despesas atribuídas ao mandato desde o início da atual legislatura, no começo de 2014. Entre os 613 deputados que exerceram o mandato em algum momento de lá para cá, 511 gastaram mais que ele. Do total, R$ 240 mil foram consumidos com passagens aéreas, entre Brasília e São Paulo. O restante foi gasto com combustível, aluguel de carro, telefonia, alimentação e manutenção de escritório. A verba indenizatória faz parte da Cota de Apoio à Atividade Parlamentar (Ceap) e seu valor varia de R$ 30.416,80 a R$ 45.240,67, dependendo da unidade federativa do parlamentar.
Considerado um fenômeno eleitoral em 2010, quando recebeu 1.353.766 votos, Tiririca foi o segundo mais votado na atual legislatura, ao ser reeleito com 1.016.796 votos – atrás apenas de Celso Russomanno (PRB-SP), que teve o apoio de mais de 1,5 milhão de eleitores. Em quatro anos, Tiririca perdeu quase 25% da votação. “Em 2010 ganhei por voto de protesto e 2014 por voto consciente e o povo votou porque eu fiz valer o voto! mostrei o que um deputado faz! Obrigado, São Paulo! Vocês são uns meninos lindos!”, justificou ao ser reeleito.
Tiririca teve dificuldade para assumir na Câmara. Acusado por um promotor eleitoral de ter omitido a informação de que era analfabeto, teve de fazer um teste para comprovar que sabia ler e escrever (condição obrigatória para alguém disputar um cargo eletivo no país). O caso só foi arquivado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em novembro de 2013, penúltimo ano de seu primeiro mandato. Os ministros da corte máxima do Judiciário brasileiro concluíram que ele tem “rudimentares conhecimentos de escrita e leitura” e que cassar seu registro seria uma decisão discriminatória.
Durante suas duas campanhas, Tiririca fez graça no horário eleitoral gratuito. “Você sabe o que faz um deputado federal? Eu também não. Vote em mim que eu te conto”, brincava o palhaço em sua primeira eleição. “Trabalha muito e produz pouco”, disse ele em seu primeiro ano de Casa ao Congresso em Foco.
Na eleição passada, Roberto e Erasmo Carlos entraram com processo para impedir a exibição de um vídeo no horário eleitoral em que Tiririca, caracterizado como o “rei”, faz paródia da música “O portão”, sugerindo que o cantor votou nele em 2010. “Eu votei. De novo eu vou votar. Tiririca, Brasília é o seu lugar”, dizia a letra alterada da música. Em março do ano passado, um juiz da 21ª Vara Cível de São Paulo condenou o deputado e o PR a pagarem uma indenização por danos materiais à EMI Songs, dona dos direitos da composição. Na ocasião, o advogado do parlamentar anunciou que recorreria da decisão.
Congresso em Foco tentou ouvir Tiririca, mas ninguém atendeu em seu gabinete nos últimos dois dias. Os parlamentares estão em recesso e só voltam às atividades no início de fevereiro.
A paródia de Tiririca que rendeu condenação: