- 26 de maio de 2018, as 6h06
Conta-se que, quando Nikita Krushchev pronunciou seu famoso discurso secreto durante o vigésimo congresso do PCURSS denunciando os crimes de Stálin, alguns delegados do partido chegaram a cometer suicídio, enquanto um outro tanto enfartava diante da revelação daquilo que todo mundo, ao menos na União Soviética, sabia, mas fingia não saber.
Como qualquer evento traumático, o terror stalinista é o obsceno por trás da experiência revolucionária de 1917. O terror dos expurgos foi o mecanismo excessivo que atuava nos bastidores e que mantinha o cenário político montado durante os períodos mais difíceis de consolidação do regime soviético. Ao ser exposto, esse mecanismo excessivo, “ob-sceno”, que se esconde por trás da cena da revolução, produziu ao menos dois efeitos imediatos: por um lado criou a tarefa urgente, sempre incompleta, da esquerda enfrentar os conteúdos latentes que deram esteio as suas experiências totalitárias nos anos de 1930; por outro, ofereceu uma poderosa estratégia retórica, cercada por falacias históricas e ideológicas, para que a direita pudesse esconder suas próprias misérias e lançar sobre as costas dos “totalitários” (sempre empurrados convenientemente para o campo adversário) a responsabilidade moral por toda desgraça e morte que marcou o século XX.
Até hoje, sempre que se fala sobre a revolução de 1917 ou se cita o nome de Karl Marx, aparece alguém para levantar histericamente uma quantidade de impropérios conceituais e um desfile pouco articulado de chavões sobre o totalitarismo aliado a listas e mais listas contendo números estratosféricos de mortos. Isso faz com que personagens como Thanos, Galactus ou Darth Vader pareçam diletantes incompetentes diante de um Stálin que matou “seiscentos zilhões de pessoas”. E tudo isso aqui mesmo, na terra, com os arcaicos métodos analógicos do século XX, sem nenhuma Estrela da Morte que pudesse sair por aí devorando planetas.
Essa estratégia de histeria retórica muitas vezes paralisa a esquerda, incapaz de assumir Stálin como um conteúdo latente. Nesse sentido, a tarefa de ultrapassar psicanaliticamente o evento traumático do terror passa, de certo modo, por assumir a figura paterna de Stálin, para só assim, compreender o que há de insuficientemente radical no projeto emancipatório da esquerda que fez com que as esperanças democráticas da revolução descambassem em um modelo autoritário.
Mas assumir a figura de Stálin, como um pai terrível, apesar de necessário, não é suficiente. É preciso também marcar a diferença do terror stalinista para com o terror nazista, sem que isso implique nenhum tipo de autoindulgência.
Na verdade, o mais curioso é que quem melhor apontou para a grande distinção estrutural entre hitlerismo e stalinismo foi justamente um nazista de carteirinha. Em sua famosa e constrangedora entrevista para a revista Der Spiegel, em 23 de Setembro de 1966 e publicada em 1976, intitulada “Agora só um deus pode nos salvar”, o filósofo Martin Heidegger comparou as câmaras de gás, nos campos de extermínio nazistas, com a moderna agricultura mecanizada.
A comparação foi tão infeliz e embaraçosa para a consciência padrão liberal, que até hoje é assunto nas rodas de fofocas acadêmicas. Mas, antes de ser infeliz, a comparação foi mesmo profundamente equivocada. A comparação com a agricultura mecanizada não se adequa de modo algum aos campos de extermínio nazistas: espaços de uma negatividade radical, ambientes rigidamente administrados por uma técnica de execução em massa cujo fundamento era profundamente niilista e pré-moderno. A despeito de ser, como a mecanização agrícola e a grande indústria, uma expressão da razão técnica, do “dispositivo técnico” (como dizia Heidegger), a fábrica nazista não fabricava nada. Ou melhor, fabricava “o nada” do extermínio total.
A metáfora de Heidegger na verdade deveria ser dirigida aos Gulags stalinistas onde a lógica da mobilização total em busca de uma produção absoluta reduzia seres humanos à espectros fantasmagóricos desprovidos de energia vital. A narrativa stalinista apresentava os Gulags como campos de trabalho e resistência heroica contra o fascismo, marcando uma visão produtivista e modernista que difere em muito da mitologia escatológica da “solução final para o problema judeu” e do “crepúsculo dos deuses” e sua guerra total, radical e definitiva dos nacionais socialistas.
Se o nazismo tinha como objetivo fundamental o extermínio físico puro e simples e a limpeza étnica como elemento de produção de um espaço vital para o povo alemão, os Gulags stalinistas buscavam a mobilização total, absoluta, das forças produtivas de modo a consolidar o esforço stalinista de industrialização em um ambiente paranoico de “cerco capitalista”.
Mesmo durante o período mais selvagem do terror de Stálin, a época dos grandes expurgos de Moscou entre 1937 e 1939, os dados mais fieis, indicam a execução de 680 mil pessoas, em sua grande parte, membros do partido comunista. A maioria dessas pessoas foram executadas ainda na prisão, antes mesmo de serem enviadas aos Gulags, onde, no mesmo período, 1,3 milhões de pessoas foram encarceradas (mais ou menos a população carcerária dos EUA pós era Reagan). Dessa população, mais da metade condenadas por crimes comuns e cerca de 44% por crimes “contra revolucionários”.
No cálculo de mortos muita gente comete, em função de suas preferências ideológicas, a desonestidade intelectual de colocar na conta do comunismo (como pura abstração conceitual) não apenas as execuções realizadas durante os expurgos de Moscou ou as mortes nos Gulags de Stlálin. Muitos acrescentam ao apurado da catástrofe as mortes da chamada “grande guerra patriótica” (como os russos denominam até hoje a segunda guerra mundial) e da guerra civil, mesmo sabendo que parte substancial dessas mortes foi causada também pela fome, pelas epidemias, pelo desmantelamento econômico causado pela guerra e coletivizações; e que o esporte de executar gente era tão usual entre os “brancos” anti-comunistas quanto entre os “vermelhos” bolcheviques.
Essas distinções não tornam, obviamente, o terror stalinista menos obsceno, terrível e moralmente insustentável do que o extermínio nacional socialista. O efeito conceitual fundamental dessa distinção é o de aproximar a mobilização total do Gulag, que levou milhões à morte, da mobilização total da globalização capitalista. Desde a chegada de Colombo à América, passando pela conquista do México por Cortez no século XVI até o holocausto do Congo belga no século XIX, descrito de modo magistral por Joseph Conrrad, o sentido dos milhões de mortos e escravizados, resíduos humanos, baixas colaterais do horror de mercado, tem sob seu fundamento o mesmo núcleo ideológico estruturante que instituiu a experiência da modernidade.
A tragédia do colonialismo, da escravidão e do extermínio dos povos americanos obedece, como Heidegger sabia desde os anos de 1930, a uma dinâmica de razão instrumental de produção, de um dispositivo técnico que também gestou as bases ideológicas da mobilização total stalinista. Algo totalmente diverso do niilismo absoluto do extermínio nazista.
A questão é que nunca houve um “manifesto capitalista” que pudesse servir como atestado doutrinário de óbito das milhões de vítimas do processo de expansão colonial e de industrialização dos países ocidentais. Ninguém pôde ser facilmente responsabilizado pelo massacre do Congo, pela grande fome de Bengala ou pelos milhares de mortos pela falta de alimento que assolou as tribos das pradarias norte americanas quando o preço da pele de búfalo disparou no mercado internacional. É mais fácil responsabilizar objetivamente as figuras de Hitler e Stalin pelos massacres de seus regimes e como consequência estrair uma relação de causa e efeito para com as doutrinas políticas que dão fundamento ideológico a esses regimes. Para a direita, no caso do avanço da globalização capitalista, “as coisas simplesmente aconteceram assim” como se o horror econômico fosse um fenômeno natural, tal quais as monções na Ásia, os furacões do Caribe ou a seca do Nordeste.
O cinismo político de uma leitura desse tipo, vale salientar, é tão desconcertante quanto as tentativas de acusar “as mentiras da imprensa ocidental” pelo terror dos expurgos e Gulags.
De mãos dadas, caminham pela trilha do terror os irmãos siameses do iluminismo europeu em sua grande aventura da razão. Lado a lado, liberais e socialistas tem, com seus modelinhos teóricos, os dois pés fincados nas justificativas ideológicas que deram esteio a grande avalanche de mortes em massa que instituíram as bases da modernidade nos últimos 500 anos.
Bem longe deles, anda em caminhos heterodoxos o anacronismo nazista, com seu niilismo pré-moderno e sua escatologia ideológica de um crepúsculo dos povos e das raças em uma grande guerra que vitimaria deuses e homens com a mesma fúria de fogo e sangue.
O fato é que, a despeito dessas semelhanças de família que agrupam e afastam esses “ismos” doutrinários, há pelo menos uma particularidade notável na experiência stalinista do terror.
Quando Krushev pronunciou seu “discurso secreto”, em 1953, dos 139 membros efetivos do Comitê Central do Partido Comunista Soviético eleitos em 1934, às vésperas dos grandes expurgos, apenas 41 tinham sobrevivido.
Dos velhos bolcheviques que fizeram a revolução de 1917 e ganharam a guerra civil, poucos escaparam para ver a denuncia de Krushev contra Stálin exibir as feridas ocultas do regime.
Antes de mais nada, o terror bolchevique que eclodiu de modo mais intenso nos anos de 1930, foi uma espécie de automutilação coletiva. Um suicídio partidário que vitimou os mais próximos, os semelhantes, e não apenas os mais distantes, os “diferentes”, como no caso nazista. Como uma repetição do terror jacobino da revolução francesa, os expurgos mais pareceram uma performance fatal. Uma encenação farsesca, uma repetição neurótica de um modelo anterior do jacobinismo francês, onde o acontecimento revolucionário, antes de mais nada, se volta com seus próprios produtores.
Tal qual Cronos, que assim como Stálin também assume uma das imagens arcaicas da figura paterna, em sua ansiedade de bloquear o tempo e congelar o potencial disruptivo da história, a revolução, com seus excessos obscenos, acabou, no tempo do terror, a devorar mais uma vez seus próprios filhos.