Governo Bolsonaro: conheça a academia que formou o presidente e seis integrantes do governo
Turma de 1969, de 1975, de 1976, de 1977 e por aí vai. Sete integrantes da alta cúpula do governo de Jair Bolsonaro compartilham o mesmo ponto de partida em suas carreiras, com identidades forjadas na juventude em suas respectivas classes na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Resende, no Rio de Janeiro.
O presidente, seu vice e cinco ministros iniciaram suas trajetórias na academia, a única escola de formação de oficiais combatentes de carreira do Exército Brasileiro. A Aman desfruta de prestígio e admiração entre os militares, mas é pouco conhecida pela população em geral, e adquire peso ímpar na próxima gestão – alçando pela primeira vez um ex-cadete à presidência.
Em 1º de dezembro de 2018, o capitão reformado Jair Bolsonaro retornou ao pátio principal da academia para assistir à cerimônia da qual ele próprio participou em 1977, e que outros integrantes do governo cumpriram em anos variados: o ritual de formatura em que 427 cadetes, em traje de gala, trocaram seus espadins pela espada de oficiais, tornando-se aspirantes.
A frase que resume a filosofia ensinada na academia estampa uma das fachadas de seu pátio central: "Cadete! Ides comandar, aprendei a obedecer".
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Além de Bolsonaro, marcaram presença na cerimônia o vice-presidente, Hamilton Mourão, formado na Aman em 1975; o general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, agora Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, da turma de 1969; e o general Fernando Azevedo e Silva, Ministro da Defesa, egresso da turma de 1973.
Os outros ministros do Exército no governo também passaram pela escola. São eles o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, da Secretaria de Governo (da turma de 1974); o capitão Tarcísio Gomes de Freitas, da pasta de Infraestrutura (1996); e o capitão Wagner Rosário, da Controladoria Geral da União (também 1996).
O general Edson Leal Pujol, escolhido por Bolsonaro para ser o novo Comandante do Exército, foi de sua turma na Aman, formando-se em 1977.
O gabinete de Bolsonaro tem um total de sete representantes das Forças Armadas, praticamente um terço de seus 22 ministérios. O almirante de esquadra Bento Costa Lima Leite de Albuquerque Junior (Minas e Energia) é da Marinha e o astronauta Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), da Aeronáutica.
'Disciplina e hierarquia'
O programa de graduação em Ciência Militares na Aman tem equivalência reconhecida a um curso de graduação universitário pelo Ministério da Educação.
A rotina e o currículo, entretanto, diferem largamente de um bacharelado civil, com regime de internato, matérias e treinamentos militares e tendo o respeito à disciplina e à hierarquia como pilares fundamentais.
"Incorporando-me ao Exército Brasileiro, prometo cumprir rigorosamente as ordens das autoridades a que estiver subordinado, respeitar os superiores hierárquicos, tratar com afeição os irmãos de armas e com bondade os subordinados", diz o juramento repetido por cada cadete ao iniciar sua formação, prometendo defender a Pátria "com o sacrifício da própria vida".
O campus da Aman tem 67 quilômetros quadrados - uma pequena cidade dentro de outra, Resende, que tem 127 mil habitantes e fica às margens da rodovia Presidente Dutra, três horas ao sul do Rio.
O maciço de Itatiaia e o imponente Pico das Agulhas Negras - o mais alto do Rio e quinto ponto mais alto do Brasil - inspiraram o nome da academia, que em 2019 completará 75 anos na localização atual.
Cerca de 12 mil pessoas circulam diariamente pelo campus, que inclui uma vila militar com mais de 500 casas, alojamentos para 1,8 mil cadetes, hospital, estação de tratamento de esgoto, igrejas, capelas e áreas extensas para treinamento esportivo e militar - incluindo um complexo de tiro com linhas de alvos de até 300 metros, permitindo o treinamento de atiradores de elite.
Regime de internato
O campus é aberto a visitantes, recebidos na entrada em um contêiner que destoa da arquitetura sólida e austera do conjunto de edifícios. Um cartaz solicita usar "traje compatível com o ambiente militar", exibindo fotos (a maioria de mulheres) dos itens proibidos: short, minissaia, roupa transparente e blusa decotada, entre outros.
Os cadetes são moradores permanentes da academia. São 1.787 cadetes, entre eles quase 50 de "nações amigas", como Arábia Saudita, Vietnã e Camarões.
A turma que começou em 2018 é a primeira na história da academia a incluir mulheres, com 40 vagas para o sexo feminino, seguindo lei sancionada em 2012 pela ex-presidente Dilma Rousseff. Até então, só homens entravam na academia.
Todos os estudantes chegam de mala e cuia da Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx), em Campinas, onde cursam o primeiro dos cinco anos de formação. Ingressam através de concurso público, e passam a receber cerca de R$ 1 mil mensais como ajuda de custo. Também recebem um número, pelo qual passam a responder às chamadas de presença; duas fardas completas, com direito a coturno, calça, meia, camiseta; e uma cama.
Nos dois primeiros anos, são seis beliches e 12 cadetes em cada quarto do alojamento. A partir do terceiro ano, eles ganham uma cama individual, e passam a dividir o cômodo com outros cinco colegas.
Rotina militar
O dia começa com o café da manhã às 6h20, seguido da chamada formatura no pátio central, uma reunião com as ordens do dia. As aulas começam às 7h30 e se estendem até as 16h - mas as atividades e os estudos só terminam de noite.
A rotina é sacrificante e de isolamento do mundo lá fora, mas cadetes entrevistados pela BBC News Brasil falam de sua escolha com obstinação.
"Vim para cá porque acredito que o Exército, em um país tão grande quanto o nosso, é o grande vetor da cidadania e dos valores no Brasil", considera Pedro Henrique Castro Dias Wattimo, de 20 anos, natural de São Gabriel, no Rio Grande do Sul. "É essa certeza que nos leva a acordar todo dia às 5h30 e terminar nosso expediente depois das 19h com o sentimento de dever cumprido".
O jovem cadete descreve as atividades diárias como uma "montanha russa", alternando provas, aulas, treinamento militar, educação física, e sempre muito estudo. "A gente tem um lema: 'maturidade, mentalidade e motivação'. Com isso a gente galga o que a gente quiser", acredita Wattimo.
O bacharelado em Ciências Militares mescla disciplinas de exatas, humanas e teoria e prática militar. São aulas como economia, estatística e química; psicologia, filosofia e sociologia; tiro, treinamento físico e história militar.
Além do currículo comum, há variações de acordo com a especialização escolhida por cada cadete após o primeiro ano - as "armas", no jargão militar, podem ser Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia ou Comunicações, além do quadro de material bélico ou do serviço de intendência do Exército.
Chefe da divisão de ensino da Aman, o coronel João Augusto Vargas Ávila destaca que a graduação soma 8.200 horas de aula, superando cursos como Medicina, Direito e Engenharia. "Nossos alunos são disponíveis 24 horas por dia e o modelo pedagógico é muito diferente de uma universidade civil. Temos um sistema de avaliação continuada envolvendo a parte cognitiva, psicomotora e afetiva. É o que chamamos de avaliação atitudinal", explica.
Isso significa que os cadetes estão sendo sempre avaliados, e atitudes no dia a dia contam pontos, somando-se às notas obtidas em provas.
Chegar atrasado para refeições pode contar pontos negativos, e colar na prova ou mentir são consideradas infrações gravíssimas. Podem levar punições como a perda do direito de sair do campus no fim de semana, ou mesmo exclusão de uma disciplina. Já o uso de drogas dentro do campus é considerado inadmissível, explica Ávila, podendo ser punido com o desligamento da instituição.
Longe da 'turbulência' da vida política
A Academia Militar das Agulhas Negras recebeu este nome em 1951, mas é uma das instituições mais antigas do Brasil - a versão atual da Real Academia Militar, criada em 1810 por Dom João 6º.
A escola mudou de nome, e endereços, diversas vezes, até que em 1913 foi criada a Escola Militar do Realengo, instalada no subúrbio do Rio. Foi nela que se formaram os cinco militares que vieram a presidir o Brasil entre 1964 e 1985, nos anos da ditadura - Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo.
O plano de levar a academia para Resende surgiu no início dos anos 1930, idealizado pelo marechal José Pessoa (irmão de João Pessoa, o governador da Paraíba cujo assassinato foi o estopim para a Revolução de 1930, dando início ao governo de Getúlio Vargas).
Pessoa, o marechal, era um crítico da participação de jovens oficiais militares na vida política, que se dava de forma expressiva no Rio, então capital do país.
"Desde o golpe republicano de 1889 que instaurou a República, passando pelas revoltas florianistas e o tenentismo dos anos 1920, alunos ou jovens oficiais militares participavam ativamente da vida política", explica o antropólogo Celso Castro, diretor do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da FGV (CPDOC).
O terreno em Resende foi escolhido não apenas pelo espaço que oferecia, mas pela distância das "turbulências" da capital. "Pessoa vislumbrou essa alternativa como forma de ter instalações melhores, num clima mais adequado, mas principalmente como forma de afastar a formação dos jovens oficiais da vida política da capital", considera Castro.
O campus foi inaugurado em 1944, inicialmente com o nome de Escola Militar de Rezende, substituindo a escola de Realengo e recebendo o nome atual em 1951.
'Espírito de corpo'
Cada turma da Aman escolhe um nome e um patrono. A turma de 1977, de Jair Bolsonaro, foi a Turma Tiradentes, em homenagem a Joaquim José da Silva Xavier, executado em 1792 por seu ativismo na Inconfidência Mineira.
Nos anos de cadete, Bolsonaro se destacou nas corridas de fundo e no pentatlo militar, recebendo o apelido de Cavalão pela destreza nos esportes. Seguiu sua formação na Escola de Educação Física do Exército e na Brigada Paraquedista no Rio, onde se estabeleceu, e foi subindo de patente até se tornar capitão.
Mas então se envolveu em uma série de polêmicas. Em 1986, publicou um artigo na revista Veja reivindicando melhores salários e acabou preso por 15 dias por "transgressão grave".
Em 1987, a mesma revista lhe atribuiu um plano de plantar explosivos em unidades militares para cobrar aumentos salariais. Bolsonaro negou o plano e acabou absolvido pelo Superior Tribunal Militar, mas sua carreira no Exército se tornou inviável.
O capitão passou para a reforma e entrou para a política, representando interesses militares primeiro na Câmara dos Vereadores do Rio e depois no Congresso, em sete mandatos como deputado.
Mesmo há 30 anos fora da caserna, a ligação com a academia e com os colegas de turma permaneceu viva ao longo das décadas, cultivada em encontros anuais e agora refletida na composição do novo governo.
Para o antropólogo Celso Castro, a confiança depositada em seus pares reflete o espírito coletivo que descreve no livro Espírito Militar - um antropólogo na caserna (Zahar, 1990), sobre a formação de cadetes na Aman.
"O espírito de corpo é forjado principalmente pelo fato de que as atividades são realizadas em conjunto, especialmente em momentos difíceis, como manobras e exercícios de campo", diz Castro. "A camaradagem é muito valorizada, mas também convive com a competição meritocrática, expressa na classificação escolar, que é muito importante: classificação é antiguidade; e antiguidade, como diz o ditado militar, é posto", assinala o diretor do CPDOC/FGV.
Para Castro, ao compor seu governo, Bolsonaro demonstrou confiança "em pessoas que têm a mesma alma mater" que ele, "mais do que em uma afinidade estritamente política". "Bolsonaro já é um ser político há quase três décadas, mas a formação militar é algo presente para toda a vida", ressalta o antropólogo.
O general Augusto Heleno, agora chefe do Gabinete de Segurança Institucional, era instrutor da Aman quando Bolsonaro entrou como cadete em 1974, e conviveu com ele nas aulas de educação física. Hoje um dos mentores do presidente, ele diz sempre repetir o mesmo conselho para Bolsonaro.
"Sempre digo que o governo dele tem que ter três pilares: austeridade, honestidade e transparência. Isso se sustenta em uma ideia repetida quase diariamente para os cadetes na Aman, e que ele conhece bem: ninguém consegue comandar sem antes dar o exemplo. Estabelecer o exemplo é fundamental", ressalta o general.
'Valores imutáveis'
Bolsonaro se formou na Aman durante a ditadura militar, e se reformou do Exército em 1988, quando o Brasil promulgou a atual "constituição cidadã".
Chefe da divisão de ensino da Aman, o coronel João Augusto Vargas Ávila explica que o currículo da instituição passou por transformações dos anos 1990 para cá - tanto para acompanhar as "mudanças conjunturais" quanto para obter reconhecimento no âmbito civil ao bacharelado em Ciências Militares.
"Até 30 anos atrás, o currículo tinha maior foco em ciências exatas, incluindo álgebra, trigonometria, física, mecânica. Hoje há um equilíbrio entre humanas, exatas, ciências sociais, com uma abordagem mais multidisciplinar", afirma.
Entre disciplinas que ganharam espaço estão filosofia, psicologia, língua portuguesa, relações internacionais e geopolítica. "Hoje queremos um oficial que tenha pensamento crítico e que se expresse bem", diz o chefe de ensino.
"Muda o ensino, a doutrina é aperfeiçoada, mas o que é imutável para a gente são os valores. Isso não muda. Se você voltar daqui a 20 anos, os valores serão os mesmos", garante Ávila.
O cientista político Maurício Santoro, professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), ajudou a criar a cadeira de relações internacionais na Aman e deu aulas na academia. Para ele, a introdução da disciplina é um exemplo importante das mudanças na formação de oficiais após a redemocratização, refletindo um maior interesse do Exército por questões globais e na atuação em missões de paz no exterior.
"As pessoas veem o Exército como uma instituição que não muda, mas não é assim. É uma instituição conservadora, que adota mudanças graduais. A formação de hoje não é a mesma que a do regime autoritário", considera Santoro, que compara a experiência de dar aulas na Aman à de lecionar em uma boa universidade.
"Os cadetes são muito dedicados e apaixonados pelo que fazem", completa.
Dívidas com a ditadura
O corpo de cadetes está passando por mudanças significativas, com a entrada da primeira turma de mulheres em 2018; e o primeiro grupo selecionado por cotas raciais ingressando na escola preparatória em Campinas em 2019, para chegar à Aman em 2020.
Apesar das transformações, Santoro aponta para dívidas com o passado. "O Exército ainda não fez ainda uma autocrítica em relação à ditadura, e a visão que se passa aos cadetes é de que a ditadura foi boa para o Brasil", lamenta. "Deveria haver um esforço de reconhecer as violações de diretos humanos e os erros daquele período, o que infelizmente ainda não aconteceu."
Perguntado a respeito, coronel Ávila afirma que no meio militar "não se fala em ditadura nem se usa esse termo, golpe". "Houve um momento em que isso se fez necessário, e quando não era mais necessário, acabou", resume ele.
Questionado sobre o endurecimento da ditadura e as violações de direitos humanos cometidas pelo Estado, Ávila fala no regime como uma contrarrevolução. "É isso que é colocado aqui, de maneira muito clara. A história é contada como ela é, como aconteceu, sem viés ideológico político", insiste.
Desde o início de sua vida política, Bolsonaro despontou como um defensor do período da ditadura militar. Quando a democracia havia sido recém-restabelecida no Brasil, defendeu publicamente o retorno ao regime autoritário - tanto em discursos no plenário da Câmara dos Deputados quanto em entrevistas. A postura de negar a ditadura e as violações ocorridas ao longo de seus 21 anos gera forte preocupação entre seus opositores.
'Escola de líderes'
Um passeio pelo campus da Aman leva ao encontro de ícones brasileiros de diferentes épocas, imortalizados em estátuas como as dos quatro tenentes que morreram "em ato heroico" na Segunda Guerra Mundial, ou de heróis brasileiros na guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, nos anos 1860. Há tantos bustos que não raro se tornam referências geográficas. "Te encontro lá no Dom João 6º", a reportagem entreouviu no corredor.
O auditório principal da academia recebe o nome do general Emílio Garrastazu Médici, que comandou a Aman entre 1963 e 1964. Médici presidiu o Brasil entre 1969 e 1974, os anos de maior crescimento econômico da ditadura militar - e também os mais violentos. É uma figura polêmica da história brasileira, mas no hall de mármore de Carrara que dá para o auditório, está homenageado em um retrato presenteado por sua família à academia.
"Aman: escola de líderes", diz uma faixa pendurada no auditório.
Ao sair da academia como aspirantes a oficiais, os jovens receberão a missão de comandar uma pequena fração - em geral pelotões de cerca de 40 homens - em algum lugar do Brasil. Foi o que atraiu Fabiano Oliveira Dutra, de 21 anos, natural de Belo Horizonte que está no terceiro ano da academia.
"O oficial sai da academia com uma oportunidade única para um ser humano: ter 40 homens à sua disposição. Ter o peso de moldar a vida de 40 pessoas. Foi o que me motivou a vir para cá: pensar que todo ano eu ia ganhar 40 vidas para mudar, 40 vidas para melhorar", afirma.
Para o jovem cadete, a ascensão de Bolsonaro à presidência e a chegada de antigos alunos como Mourão, Azevedo e Silva, Augusto Heleno e Santos Cruz à alta cúpula do governo é uma inspiração para graduandos de hoje.
"Há garotos que almejam ir para Harvard, Oxford ou Cambridge inspirados no que pessoas que estudaram nessas instituições alcançaram", compara Dutra.
"Isso é uma mera afirmação do que a academia é capaz de fazer. É uma prova de que ela é capaz de fornecer tudo que precisamos para crescer pessoal e profissionalmente."
Para Pedro Henrique Castro Dias Wattimo, 20 anos, a academia ensina valores essenciais para governar o país.
"Liderar, gerir recursos humanos, ser probo, não atentar contra o erário, é tudo isso que aprendemos aqui. Eles estão transpondo as barreiras da caserna e levando isso para a sociedade", considera o cadete.
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