quinta-feira, 2 de agosto de 2018

A Descoberta do Outro: a fúria incontida dos homens de sistema

Flavio Gordon - Gazeta do Povo

“O próximo, com efeito, é intolerável. Sua espessa concretude, seu rosto, seus músculos, seu bigode, nos impelem a derivar nossos bons sentimentos para coisas mais puras e elevadas. Voltamo-nos para a espécie humana, para ideias e causas sagradas. É mais fácil querer bem à humanidade em peso do que ao vizinho que ouve o radioteatro. É mais amplo, mais generoso, falar num microfone virado para o porvir, atirando palavras para um bilhão de ouvidos que ainda não nasceram, do que entrar num quarto cheirando a remédio e a suor”
– Gustavo Corção, A Descoberta do Outro
“A família era o primeiro campo de batalha dos bolcheviques. Nos anos 1920, eles tinham por artigo de fé que a ‘família burguesa’ era socialmente danosa: auto-centrada e conservadora, era vista como um reduto de religião, superstição, ignorância e preconceito”
– Orlando Figes, Sussurros: A Vida Privada na Rússia de Stálin

Antes da internet, a seção de “Cartas dos Leitores” era o único acesso dos jornalistas ao pensamento de seu público. Filtradas e editadas, apresentavam-se ao escrutínio geral vestidas com a roupa que o jornal ou a revista escolhessem para elas. Escolhessem a contragosto, vale dizer, porque, entre os jornalistas da velha guarda, o sentimento de desprezo e deboche para com os dedicados missivistas era uma espécie de tradição profissional. Lembro-me de ter visto certa vez, numa entrevista de bastidor, um jornalista veterano confessando a um colega: “Só maluco escreve para as Cartas dos Leitores” – e riam ambos, ridicularizando à boca pequena o que, com pose de arautos da democracia e da participação popular, afetavam louvar publicamente.

Em geral, aquele espírito blasé de superioridade sobre o leitor continua vigorando no nosso meio jornalístico, tendo inclusive se acentuado na medida mesmo em que a qualidade intelectual dos profissionais de imprensa decaiu vertiginosamente. O fato novo é que, com as redes sociais, os jornalistas passaram a ser confrontados diretamente pelo público, sem filtro e sem edição. Antes tão facilmente domesticado, esse público tornou-se selvagem. Eis então que a velha cultura de desprezo elitista por quem os sustentava – outrora manifesta, com cinismo, apenas no microcosmo das redações – começou a se mostrar, à revelia, nas respostas dos jornalistas às interpelações dos leitores. Deixando de ter apenas boca, os jornalistas ganharam ouvidos, e o que lhes entrou aí adentro não agradou nem um pouco.

Uma coisa era falar para um público mudo, que, quando muito, só podia responder através do próprio jornalista, tal qual um boneco de ventríloquo. Nessas condições, não era tão difícil a manutenção daquela pose de superioridade olímpica, ademais garantida por um ambiente de interbajulação e elogios em boca própria. Outra coisa, muito diferente, era falar após ter ouvido, após ter tido sua autoimagem e autoconfiança desafiadas frontalmente (por vezes, implacavelmente) pelos leitores mais críticos. Depois dessa experiência radical e anárquica de intersubjetividade, a forma expressiva de nossos jornalistas mudou de natureza, tornando-se menos segura de si, menos autenticamente blasé, e por isso mesmo, a título de compensação, ainda mais ostensivamente presunçosa. Ao sair da cômoda relação Eu-Isso e ingressar na desconfortável relação Eu-Tu – para usar a clássica oposição do filósofo Martim Buber (1878-1965) –, o jornalista brasileiro, exasperado, acabou por exibir à luz do sol aquele inconfessável espírito de corpo que, nos idos tempos, entre doses de uísque e guimbas de cigarro, só as luzes frias da redação iluminavam.

Aquela experiência antropológica de descoberta do outro não perturbou apenas os jornalistas, é claro, mas toda a classe de formadores de opinião, para quem o encontro com o público extrapares equivaleu aos primeiros contatos dos navegantes ibéricos com os indígenas americanos. Surpreendidos por experiência tão brutal, e com a autoestima abalada, nossos bem-pensantes (e falantes) começaram por maldizer o incivilizado interlocutor, cuja insubmissão à autoridade moral e intelectual da qual se criam detentores lhes pareceu escandalosa. Como podia o silvícola insistir no churrasco de domingo, se os especialistas diziam ser ele o vilão do aquecimento global? Que tipo de barbárie poderia justificar o interesse por princesas da Disney, se um estudo as mostrava como prejudiciais à autoestima das crianças? Por que todo o horror de presentear meninas com bonecas e meninos com carrinhos, se isso reforçava os estereótipos de gênero? Se, como todo mundo sabe, o correto agora são as lingeries masculinas, por que tantos homens trogloditas se obstinam no uso arcaico das cuecas?

Frustradas as tentativas de conversão dos selvagens à sua fé – a venerável religião do lacre –, a classe falante redirecionou a sua revolta para os próprios meios que possibilitaram o encontro fatídico. “Retiremos tudo o que foi concedido a esses incorrigíveis aborígenes” – era como se dissessem. “Para eles, já basta de Facebook, Twitter, WhatsApp. Até que se tenham domesticado e acolhido a nossa fé, não deverão voltar a dispor dos bens da civilização”. Muitos dos acontecimentos que marcaram os últimos dias parecem ter precisamente esse sentido, com destaque para o apoio declarado de profissionais da imprensa, artistas e autoridades à restrição da liberdade de circulação de informações na rede, e para a alienação provinciana da bancada de jornalistas que entrevistaram o candidato à presidência Jair Bolsonaro no programa Roda Viva da última segunda (30/07/2018). Mas foi a fala de um típico representante de nossa valetudinária intelligentsia – o deputado Jean Wyllys, do PSOL – que acabou sintetizando o presente Zeitgeist.

Entrevistado pelo jornalista Murilo Ribeiro no programa Chega Junto, no YouTube, o deputado tratou basicamente das famigeradas “notícias falsas”. Segundo ele, as pessoas mais predispostas a espalhá-las são aquelas que, ao contrário dele, um autoproclamado “progressista”, não têm discernimento o bastante para desfrutar dos meios de democratização da informação. O deputado referiu-se particularmente a “essas senhoras que estão entrando agora nos grupos de WhatsApp, que estão entrando agora no Facebook, mães, tias…” E, como as palavras “mães” e “tias” houvessem revolvido algo obscuro no recôndito de seu espírito, interrompeu a frase para um decreto categórico: “Eu digo que os grupos de família no WhatsApp são a grande ameaça à democracia”. Compreende-se: é no seio da família que circulam ainda livremente os valores e costumes que ativistas de extrema-esquerda como Jean Wyllys, cujo controle hegemônico das instituições de ensino e cultura vem de longa data, ainda não conseguiram pôr sob o seu jugo.

Confrontado nas redes sociais pela fala autoritária, Wyllys agiu de maneira típica: fazendo-se de vítima. Sua opinião havia sido maliciosamente tirada de contexto, alegou. A declaração, no entanto, é perfeitamente coerente com várias de suas falas anteriores. É precisamente o contexto de atuação pública do deputado que ajuda a esclarecer o sentido preciso do que quis dizer. Certa vez, por exemplo, o sujeito declarou-se contra instrumentos de decisão popular direta tais como plebiscitos e referendos. “A gente não pode deixar na mão de uma sociedade que não é devidamente informada determinados temas” – disse, de novo revelando uma autoimagem distorcida de juiz da história. Em outra ocasião, não se vexou em afirmar cabotinamente: “Os livros, o conhecimento, me livraram dos destinos imperfeitos e me colocaram numa posição de transformar o mundo para melhor”. É sempre como arauto do mundo melhor (“Quero um mundo melhor”, aliás, é a frase de destaque na chamada de sua entrevista com Murilo Ribeiro) que o psolista encara o debate público e a divergência política. Quem não pensa como ele não é apenas alguém com um pensamento diferente, mas alguém atrasado na marcha da humanidade rumo ao progresso.

Espíritos como o de Jean Wyllys, majoritários em nossas classes falantes, exibem um desejo quase patológico de controle total sobre a cultura e a sociedade. São a ilustração perfeita daquilo que, em sua Teoria dos Sentimentos Morais, Adam Smith (1723-1790) chamou de homem de sistema, o sujeito capaz de ser “muito sábio em seu próprio conceito, e frequentemente tão enamorado da suposta beleza de seu plano ideal de governo, que não pode tolerar o menor desvio de qualquer de suas partes” Ainda segundo Smith, esse homem “parece imaginar poder dispor dos diferentes membros de uma grande sociedade com a mesma facilidade com que dispõe as diferentes peças sobre um tabuleiro de xadrez. Não considera que as peças sobre o tabuleiro tenham seu próprio princípio de movimento, distintos daquele que sua própria mão lhes imprime”. E, se é verdade que “alguma ideia geral e até sistemática de perfeição da política e da lei” possa ser útil para orientar as visões do estadista ou de quem detém algum tipo de poder, o filósofo escocês alerta que “insistir em estabelecer, e estabelecer de uma só vez, a despeito de toda oposição, tudo o que essa ideia possa parecer exigir, constitui com frequência o mais alto grau de arrogância. Significa erigir o seu próprio juízo como supremo critério de certo e errado, proclamar-se o único homem sábio e digno da nação, e imaginar que seus concidadãos devam submeter-se a ele antes que o contrário”.

Como não aceitam a antropologia do pecado original, os homens de sistema pretendem encarnar a imagem da nova humanidade que, ideal e perfeita, fatalmente há de surgir nalgum ponto do horizonte da história. Daí não suportarem a ideia de que ainda haja quem não se submeta irrestritamente à sua visão de mundo. Daí que ferramentas como o WhatsApp e o Facebook lhes pareçam tão ameaçadoras, porque os expõe à alteridade cultural, por eles confundida com anterioridade temporal e inferioridade moral. Para o homem de sistema tupiniquim, o Natal em família com as mães e as tias do grupo de WhatsApp equivale a uma descida ao Inferno…

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